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Ainda estou aprendendo a gravar e mixar áudio, então não está nos padrões que gostaria, mas quero oferecer versão narrada como alternativa à leitura. Pelo menos em alguns textos.


Tinha prometido publicar as dicas sobre como diminuir tempo de tela essa semana, mas acho importante falarmos da “economia da atenção” antes. Porque assim que você entende do modelo de negócio da internet moderna e o sistema em que estamos inseridos, ficará mais fácil fazer escolhas mais sensatas.

A ilusão da autenticidade

Elan Ullendorff, em uma das minhas newsletters favoritas, a Escape the Algorithm, resume o sentimento geral em relação a algoritmos:

  • Acho que não estou sozinho quando digo que passamos por uma ansiedade algorítmica, essa sensação de que estamos sendo moldados e manipulados pelas plataformas, sem saber ao certo o que é autêntico.
  • Se desconectar não resolve, pois vivemos em um mundo profundamente influenciado por esses algoritmos e plataformas, mesmo offline.
  • Sempre existiram forças e centros de poder que moldam nosso comportamento, só que essa ansiedade moderna vem mais da falta de transparência e controle do que da presença de algoritmos em si.

Imediatamente lembrei de uma cena do filme O Diabo Veste Prada onde Andy (interpretada por Anne Hathaway) ri de um debate entre Miranda Prisley (Meryl Streep) e sua equipe sobre qual cinto de um look é melhor, ambos parecem idênticos para Andy e Miranda dá uma aula sobre como as roupas casuais que ela usa, são fruto de uma cadeia de influência da indústria fashion.

A icônica cena de O Diabo Veste Prada revela como escolhas aparentemente autênticas são moldadas por forças invisíveis.

Superestimamos o grau em que somos o produto de escolha consciente e subestimamos as de influencias situacionais e sociais nas nossas percepções, desejos e comportamentos de consumo.

Mas há uma distinção crucial entre influenciar (que vou chamar de persuasão durante o restante do texto) e manipular.

  • Persuasão, quando bem intencionada, é um convite para considerar novas perspectivas — ela expande nossa consciência e nos capacita a fazer escolhas mais sensatas.
  • Manipulação, por outro lado, busca limitar nossa autonomia através de táticas psicológicas para nos direcionar a resultados pré-determinados, muitas vezes em desacordo com nossos interesses.

Essa percepção de que nossas escolhas são manipuladas por algoritmos gera uma ansiedade, mas será que isso é algo realmente novo? Na verdade, a publicidade e o marketing já influenciam nosso comportamento há muito tempo.

O papel do capitalismo

Mas por que nossa atenção é tão cobiçada?

A resposta reside na engenhosidade do anúncio como mecanismo econômico. É uma solução elegante para algo que Karl Marx previu que seria um problema quase insolúvel para os capitalistas: encontrar novas fronteiras para privatizar e lucrar.

Publicidade tradicional

O marketing, historicamente, tenta te persuadir a comprar um produto ou serviço. É um convite para você considerar novas perspectivas — que um tênis pode te inspirar a ser mais saudável — ou informar — algo como quantos pixels tem a câmera do seu celular. Não se trata apenas de fechar o negócio, mas de atrair, envolver e encantar os clientes.

A publicidade pré-internet era como jogar uma grande rede no oceano e esperar que o consumidor pegasse alguma coisa. Tinham-se os comerciais de TV e rádio, anúncios em revista e outdoors, cada um com seu próprio charme e desafios.

As famílias se reuniam em torno de suas TVs ou rádios, aguardando ansiosamente seu programa favorito, apenas para serem interrompidas por comerciais. Não existiam smartphones para distraí-los ou a capacidade de pular anúncios.

Os comerciais de TV tornaram-se fenômenos culturais, criando jingles e bordões que ainda hoje são lembrados. A rádio, por outro lado, dependia do poder da imaginação, com os anunciantes criando narrativas e jingles para encantar o ouvinte.

Marketing digital

Os jovens que tendem a ser adeptos da utilização dos meios de comunicação social, constantemente online, estão cada vez mais imunes aos clichês do horário nobre da televisão e da rádio e desligam-se mentalmente destes incômodos. Online, contudo, podem aceitar publicidade, se esta for discreta e relevante. Considerando que seu comportamento online o categorizou como público-alvo daquele anúncio, podem até o considerar útil.

A passagem acima é de uma edição da The Economist de 2006 sobre as promessas do marketing digital.

Hoje, a indústria de publicidade movimenta globalmente US$ 1 trilhão por ano, a maioria através do digital, onde cada clique, visualização e até a localização do consumidor é mensurada.

Sua idade, gênero, localização ou que comprou no passado são coletados em diferentes dispositivos, plataformas, serviços e redes, tornando-as identificáveis ​​e, portanto, fáceis de empacotar para vender. Sua atenção é valiosa apenas porque está associada a uma identidade.

O profissional de marketing digital hoje é parte mago, parte cientista de dados e parte psicólogo e tem como missão capturar a atenção dos consumidores em escala.

Veja, o que torna veículos — como Meta, Google e TikTok — tão valiosos para anunciantes não são os dados em si, mas os algoritmos que eles construíram para fazer uso desses dados.

Imagine que você é um anunciante querendo promover seu produto. Você poderia comprar um monte de dados de usuários e tentar descobrir para quem anunciar. Mas isso seria como procurar uma agulha em um palheiro. O que você realmente quer é a capacidade de mostrar seu anúncio para as pessoas certas, no momento certo.

Se os anunciantes souberem que você é uma mulher de 25 anos que acabou de comprar um tapete de ioga novo, eles poderão exibir anúncios de roupas ou retiros de ioga.

Quanto custa sua atenção?

É possível colocar um valor no quanto de tempo você dedica a tela?

Sim, esse número faz parte dos indicadores financeiros de companhias que oferecem publicidade, chama-se ARPU (receita média por usuário, da sigla em inglês).

Seu hábito de usar Instagram e Facebook vale em média R$ 28¹ para a Meta. Usuários de outras regiões geográficas chegam a valer R$ 410.

No YouTube, estima-se que a atenção de um usuário valha R$ 20² trimestralmente. Enquanto a Netflix recebe R$ 50³ de receita em troca da sua atenção.

Ao entendermos que somos o produto sendo vendido, fica mais fácil perceber os efeitos negativos que esse modelo de negócios pode ter. Um deles é a competição acirrada pela nossa atenção a qualquer custo.

O mito da rede social grátis

O conceito de rede social “gratuita” é uma espécie de contrato social-financeiro.

Um usuário publica “de graça”, mas reconhece que é um usuário e não um cliente. Embora um usuário possa se sentir como um cliente, isso não passa de uma ilusão.

A maioria das redes sociais tem só um tipo de cliente: o anunciante.

Em troca, recebemos acesso a um local onde não temos restrições de comunicação (dentro dos limites de regras da comunidade) e que não devemos nada a ninguém.

Sem as contribuições (gratuitas) dos usuários, a rede não tem valor.

Manter os usuários felizes é desafiador porque as redes sociais não estão realmente oferecendo a eles nada tangível, mas a presença e as contribuições deles fornecem muito valor agregado.

Na teoria, esses usuários não são fiéis e podem mudar sua rede preferida como bem entender. Essa tem sido a tendência desde que o Myspace foi substituído pelo Orkut, que foi substituído pelo Facebook, que foi substituído, de certa forma, pelo Instagram, que foi (pelo menos parcialmente) substituído pelo TikTok. E sabe-se lá onde o Bluesky se encaixa.

Em todas essas transições, não foram tanto os usuários de uma rede social migrando para a próxima; eram grandes grupos de pessoas chegando na internet e percebendo que a rede social mais antiga não era para eles. A internet estava crescendo, e em cada caso ela superava a plataforma dominante.

A plataforma que consegue capturar mais tempo da audiência (time spent no jargão), seja por um produto bem feito, porque sua rede de amigos esteja lá ou qualquer outro motivo é a que possui mais oportunidades de lucro.

Esse conceito de competição pelo tempo fica evidente em uma declaração do CEO da Netflix.

Competindo com o sono

Em 2017, Reed Hastings, então CEO da Netflix, foi questionado sobre a perspectiva de competição com a Amazon, que estava investindo muito dinheiro em conteúdo para sua plataforma de streaming. Hastings disse que a Amazon não era um problema. "Pense nisso", disse ele. "Quando você assiste a um programa da Netflix e fica viciado nele, ficará acordado até tarde da noite assistindo”. A Amazon não era sua concorrente, e nenhum outro entretenimento também. "Estamos competindo com o sono", disse ele.

Quase ninguém parou para apontar o quão irreal essa ideia era.

Conforme os anos passavam, o crescimento de novos usuários diminuía em todas as plataformas que competem pelo seu tempo. O Facebook, Twitter e depois o Instagram adotaram o modelo comumente conhecido como o do TikTok, substituindo feeds de amigos por feeds de influenciadores que você nunca conheceu e provavelmente não gostaria de conhecer.

O produto principal que as pessoas originalmente se juntaram para usar — se conectar com amigos, grupos e interesses — foi afogado em um mar de "conteúdo".

Por quê? A explicação mais simples é que embora o apetite por receita financeira seja infinito, a nossa atenção não é. Há apenas um número finito de horas por dia para rolar por feeds.

Sim, por um tempo — especialmente durante a pandemia — parecia que nosso apetite por tais coisas era ilimitado. Mas em algum momento, você realmente quer sair, ver pessoas em carne e osso e tocar na grama.

Talvez a pandemia foi um sinal de que encontramos o limite de quanto tempo os humanos podem passar olhando para uma caixinha de vidro.

Para vencer essa batalha pela atenção, as empresas lançam mão de uma série de mecanismos para nos manter o máximo de tempo possível conectados em suas plataformas.

Dependência Digital

Desenvolvendo produtos viciantes

Desenvolvimento de produto digital na última década, se resumiu a usar táticas psicológicas de vício para nos manter presos na tela.

No livro Hooked: como construir produtos e serviços formadores de hábitos, o autor explica que para construir produtos digitais, desenvolvedores devem pensar em quatro etapas fundamentais:

  • Trigger: O que leva o usuário à ação.
  • Ação: O comportamento mais simples em antecipação à recompensa.
  • Recompensa variável: A satisfação das necessidades do usuário, enquanto o deixa querendo mais.
  • Investimento: Fazer com que os usuários coloquem algo no produto, aumentando a probabilidade de retorno.

O livro é considerado uma bíblia entre os gerentes de produto até hoje. Embora o autor tenha tentado reverter o posicionamento publicando livros sobre uso consciente de tecnologia e se defendendo que “só estava expondo as práticas já feitas, não as incentivando”, não podemos deixar de notar que são as mesmas táticas usadas por máquinas caça-níqueis, cassinos e bets.

E o UX tornou-se uma espécie de servente para este esforço. Portanto, a notificação fica ali dizendo “oh, você não precisa olhar para isso agora, você só precisa saber que algo chegou para você e você pode olhar isso quando tiver tempo.”

Esses produtos desenvolvidos para viciar inspirados em táticas que criam hábitos, somados à onipresença dos smartphones, criam um ambiente perfeito para vício.

Distrações viciantes

Lembro-me de uma celebridade dizer durante uma entrevista que a última vez que jogou videogame sabia que tinha que ser a última.

Ele comprou um game, foi levado a jogar por mais de 30 horas durante uma semana, quando finalmente venceu o último chefe, instantaneamente atingiu uma espécie de catarse de “o que acabei de fazer?”. Ele ficou horrorizado por dedicar tempo dessa maneira.

Os comentários do vídeo estavam abarrotados de pessoas reconhecendo esse sentimento, seguidos de recomendações de outros jogos.

As pessoas realmente não querem ficar desconectadas, inclusive eu. Me esforço para me comportar um pouco menos viciado em telas do que sou, mas até agora parar de fumar e beber tem sido consideravelmente mais fácil.

Olha, não é uma coisa isolada de telas. Vivemos em uma sociedade que dá açúcar para crianças, onde alimentos ultraprocessados são mais acessíveis que frutas e beber álcool não é só socialmente aceito, como encorajado.

Mas por que nos deixamos ficar tão viciados, mesmo quando sabemos que não é saudável? No fundo, a tecnologia muitas vezes funciona como uma fuga...

Escapismo: quem determina sua atenção?

Num trecho do livro Attention Merchant — criticando o excesso de informação no mundo, o autor fala sobre “zapear canais de TV”:

Quando você pensa sobre isso, trocar de canal ou zapear, é uma maneira bizarra de gastar seu tempo e atenção. É difícil imaginar alguém dizendo para si: "Acho que vou assistir TV por três horas, divididas em segmentos de cinco a dez minutos de vários programas, nunca chegando realmente ao final de nada."

Embora a analogia seja com TV numa era pré-vídeos curtos, aplica-se muito bem ao nosso hábito contemporâneo de rolar o feed.

Em Everywhere surfing has already replaced the older sports, Rob Horning questiona a noção do livro de que isso é ruim.

No livro, ele retrata os anunciantes como usurpadores das funções executivas dos indivíduos, aproveitando-se de seus "cérebros de réptil" e forçando-os a prestar atenção em coisas primitivas. Isso, em sua visão implícita, rouba a sua autoidentidade e os regride para um estado animal de reatividade instintiva. A solução, então, seria promulgar leis que essencialmente nos prendam ao mastro para não podermos ser seduzidos pelas sereias — leis que, efetivamente, nos force a ser quem "realmente" somos, e não o réptil dentro de nós.

Não é como se as telas roubassem nossa atenção à força. Nós damos a elas esse privilégio. Mas por quê?

Não usar um telefone me ensinou para que ele realmente serve. Não é para se comunicar com outras pessoas, obter direções, ler artigos, olhar fotos, fazer compras de produtos ou jogar. Um telefone é um dispositivo para silenciar as ansiedades de estar vivo.
via Sam Kriss em seu relato sobre abandonar smartphone.

Kevin Rose, jornalista do NYT resume muito bem o sentimento de usar o TikTok quando só queremos nos render:

O que passar tempo no TikTok representa — pelo menos para mim — é uma espécie de rendição cognitiva, a intenção de parar ativamente meus pensamentos e sentimentos e deixar que o algoritmo da ByteDance me entretenha por um tempo. Pode ser uma experiência agradável e, ocasionalmente, eufórica. (as vezes, minha esposa me pega rindo do meu celular e pergunta: “O que é tão engraçado?” A resposta, sempre, é TikTok.)

Temos medo de ficar em silêncio, porque o silêncio dá espaço para ouvirmos o que nunca queremos ouvir dentro de nós mesmos.

Em “Pode ser que você tenha que ficar entediado” Kate Linsay diz:

O tédio é quando você lava a louça, faz aquela tarefa que vem adiando, responde à mensagem que deixou sem ler. O tédio é quando você leva um livro para ler no metrô ou puxa conversa com a pessoa à sua frente na fila sobre como a farmácia está lenta. O tédio é quando você faz as coisas que fazem você se sentir como se tivesse a vida sob controle. Não estar entediado é o motivo pelo qual você sempre se sente ocupado, por que continua “não tendo tempo” para levar um pacote aos correios ou escrever seu livro. Você tem tempo — você apenas decide o gastar no seu celular. Ao recusar-se a deixar seu cérebro descansar, você está escolhendo assistir à vida de outras pessoas através de uma tela em detrimento da sua própria.

Por muito tempo eu não conseguia tomar banho sem ouvir podcast porque achava que estava usando meu tempo de forma ineficiente. “Como assim esses 10 minutos em silêncio?” pensava “eu poderia estar aprendendo algo!”.

Hoje entendo que esse hábito, assim como videogame, rolar o feed ou trabalhar em excesso, eram maneiras de me distrair para não ter que entrar em contato com meus sentimentos. Se eu estivesse sempre ocupado, não teria tempo para encarar meus demônios.

Distrações são um alívio passageiro para nossas aflições, não uma solução. E se tem uma coisa que aprendi amadurecendo, é que cedo ou tarde, precisamos enfrentar o que evitamos.

Do que você está fugindo ao se distrair?


Nossa atenção virou mercadoria disputada por empresas que usam de todas as táticas possíveis para nos manter plugados. Isso gera uma ansiedade e uma sensação de falta de controle. A saída é justamente resgatar nossa capacidade de ficarmos sozinhos com nossos pensamentos, de abraçar o tédio como um momento de autodescoberta, em vez de preenchê-lo com distrações vazias. Só assim poderemos retomar as rédeas da nossa atenção e usá-la de forma mais intencional e saudável.



Notas de rodapé

Notas sobre metodologia dos valores mencionados na seção "Quanto vale sua atenção?"

¹Considerando “rest of world” como região, onde Brasil está inserido. Q4 ’23. Valor original em dólar é U$ 4,5.

²A receita de publicidade do YouTube no primeiro trimestre de 2024 foi de USD $ 8,1 bilhões e o número de usuários (MAU) é de 2,50 bilhões. Para calcular o ARPU trimestral, dividi a receita total trimestral pelo número de usuários ativos mensais = USD $ 3,24. Note que não é um cálculo exato, mas apenas uma estimativa grosseira para ilustrar o ponto.

³Netflix Q1 2024 Financial Statements. Valor original USD 8,29.

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Conversão para reais feita em 20 de janeiro de 2025 a R$ 6,02.